19 de outubro de 2023

Passo da Insónia

Caminho num cuidado de decisão lenta e firme como o faria um sonâmbulo perseguindo a generativa imagem do sonho sucessor, num ciclo de acção e disrupção dessa acção, à semelhança de um glitch mecânico, explorando cada canto submarino da arrendada paz amniótica. Para trás e para a frente, um fantasma intermitente diante do espelho negro d' um televisor em repouso. Dizem-me que a exposição à luz electrónica de certos ecrãs, me cega a vontade de dormir, que uma hora antes de me ir deitar, devo desligar todos esses dinâmicos dispositivos de captura da economia da atenção, mas como apagamos nós o ecrã infernal e a voz-off do cinema interior,em pleno ciclo de retrospectiva integral de uma obra de terror povoada de jumpscares e sangue escuro e viscoso escorrendo pelas paredes do trabalho dos dias. Sigo caminhando guiado pela luz de farol do frigorífico que abri sem vontade e somente agarrei um frio pedaço do vazio zumbido do seu íntimo, que não me devolve à terra firme do descanso, mas assinala o naufrágio do corpo sem tocar outros corpos ou se reconhecer a si próprio quando um dos próximos passos de transe roça no estado empírico de uma peça de mobília, fluido, atravessando as divisões como dimensões, um passo num diálogo mágico com a sua curiosidade intelectual pelo passo seguinte, a sombra nocturna de um cavalo que entra na sombra nocturna do mar - escurecendo em dobro o azul da imagem -, movido pela energia e poder do seu instinto e sobrevivência, dando-se à morte com toda a fúria e fibra de viver, até se dissolver exangue nas águas apaziguadas do sono, quando o sol está prestes a nascer e anunciar do cesto da gávea do horizonte a praia virgem de uma nova manhã e uma noite mais sem dormir, caminhando sem se deter mistério adentro dos seus próprios movimentos, a monte de um crime desconhecido, sem autor, móbil e castigo.


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