Lamento de te ofertar a pior versão d'ele, quando te deitas com o mesmo e falas a uma sombra colada ao ouvido das paredes, atravessando-as, até não ser o quase nada que é, partícula de adeus. Que esse silêncio de Lord Chandos venha cerzido enquanto sombra de estátua cega, impávida, mas nunca serena, renegando o afago-açoite da língua, da luz dos livros, das trevas dos homens, que lhe converteram os olhos num par luciferino de estrelas escuras ou dois lagos lamacentos ligados por faixa de terra queimada de congénita ausência. Mais palavras para quê, se as renunciei a todas? Deploro-o por nunca estar aqui nem viver o hoje, deixando de sentir tudo de todas as maneiras, fazendo-se autodidacta da invisibilidade desde cedo, suspeito que no instante intenso em que se deu conta de si mesmo, soava no berço, por sobre o seu corpo posto em sossego, a epifania em forma de melodia de ninar, de barriga para o ar iluminante da tarde, hoje descendo ao sopor de costas sonhando com uma súbita e egoísta saída de cena. Que seu rosto não denuncie expressão, compêndio de ignorâncias e golpes, rugas e lesões. Que o corpo dúbio estremeça, mas não se apegue ao toque de frescor de sombra da árvore do amor e da ciência, pouco se mexendo com o piar circular de uma ave de rapina em alto voo . É uma pena nunca se ter cumprido, irregular, inconsequente e inconcluso doutor da denegação e desistência, aluno exemplar e cumpridor do alheamento dos assuntos das musas, inconsciente do inconsciente colectivo . Devemos pois lastimar a pureza e limpidez sincera das metáforas, a luz funcional da inteligência, a falta de jeito para a alegria arremelgada dos doidos. Porém, fica ciente, fez de tudo para confiar nos princípios da incerteza, serviu com fogosa devoção o altar dos terrores, uma e outra vez derramando-se na ara dos sonhos dos outros, emprestando expressão e sentido ao melodrama das suas violências. Não minto, foi também visto nos estabelecimentos de alienação noctívaga, ébrio dançante, a uma distância segura dos amigos, jovens artistas do mais alto coturno, não fosse confundirem-no com mais um dos tantos reconhecíveis. Todavia, lucífugo, sempre se deu melhor com ratos de porão, amantes de lixo e segredo, indo porém ao fundo como capitão, quando raro chegava ao fim da viagem das garrafas de uma ou outra noite mais escura. O dito chistoso, o sorriso societal, a ferocidade das ideias eram de um outro. Hoje pouco se faz notar, recolhido antes na Boémia de Kafka. Em suma, confessa haver morrido antes de tudo o que vieste a saber por este relato sem vigia nem pudor, flocos de sangue seco, póstumo ardor. Aqui jazem todos os pontos de interesse de um cadáver, índice remissivo de dilemas e paralisias, palle livor. As escolhas que fez para morrer empalideceram o fogo que larapiou do ladrão do fogo olímpico que tudo prometeu. Ou terá sido tudo aparência de mundo neste mundo de aparência, maia, maia, fervor hindu, efabulação auto-indulgente, estudo de personagem, trabalho de actor.
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