2 de junho de 2019

O meu contributo para o segundo volume da antologia de poemas e canções Mixtape

Pastor T.L. Barrett and the Youth for Christ Choir - Like A Ship... (Without A Sail)


O espírito é um gesto como o poema é um gesto, é o gesto por dentro de um gesto, sonho de sonho, outra coisa da outra coisa, é ele que o pensa e expressa, lhe atribui forma e som, corpo e voz, mas deixemo-nos por ora dos devaneios do pensamento, não nos metamos em abismos nem entremos nos labirintos sem fim das vidas subtis, antes permitamos que a deriva de nossas ideias se ancore num silêncio atento de ouvinte ou que participemos com as nossas palmas em louvor do coro destas palmas que nos louvam, entusiastas da redenção. Agradeçamos, como Borges, que na terra haja música, um órgão num Blues a meio tempo, guiando uma secção rítmica retirada do Psych Rock e um coro de gargantas ao alto como corações, corações, por fugidios e luzidios minutos de paz e concórdia, livres e sem cuidados, banhados por uma luz irreal que acorda e puxa à tona da fé uma capela de um sono escuro como o fundo do mar, aclarando e exaltando os aspectos geométricos e cromáticos das figuras dos vitrais. Não sejamos injustos com Deus, principalmente quando soa assim o seu abandono.


James Blackshaw - The Cloud of Unknowing  

Fito a brancura da página vazia como o homem contemplativo atenta no sopé da montanha esmeralda o pico e uma gorda nuvem branca a chegar; nunca tive um plano de viagem ou estadia, uma ideia jamais pretendeu pernoitar idades a fio na imortalidade do ideal ou da ideologia, não desejei fazer da dor, uma cartilha, fui espartano nos entusiasmos e frugal nos afectos, isto é, tímido, não foi minha vontade aliviar a sede na água de nascente gelada dos grandes mortos, fui empurrado para a verdade, descobrindo que esta foi de forma igual empurrada a existir pelos homens, não foi meu o desejo de conhecer como eram o silêncio e tristeza de uma terra estranha, olhei as estrelas sem temor e desdém, fui indiferente a cismas e concórdias, deixei-me ficar, deixei-me ir, por certo, fui tocado pelo amor, mas não autorizei que me varasse, novo Tântalo, contentei-me com o quase ( estive quase lá, foste quase minha), chamando delícia a cada suplício. Ao fim e ao cabo, escrevi inadvertidamente o diário de bordo dos meus sonhos, ou melhor, fui o escriba involuntário do diário de sonhos de outro - em suma a sua morte- este corpo sempre foi passageiro de um passageiro. Entretanto, num suave glissando, a nuvem pousa sobre o pico como um chapéu, e eu, sem pensar no gesto, retiro o meu, apertando-o contra o peito. Por uns escassos segundos, a nuvem detém-se e passa, lenta, abstracta, irónica. Desce o crepúsculo sobre as palavras, as cores da tarde são agora uma e entram no seu silêncio interior, é tempo de calar-me, como quem regressa a casa. 

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