Escrever é como a segregação das resinas ; não é acto, mas lenta formação natural. Musgo, humidade, argilas, limo, fenómenos do fundo, e não do sonho ou dos sonhos, mas de barros escuros onde as figuras dos sonhos fermentam. Escrever não é fazer, mas sim aposentar-se, estar.
21 de outubro de 2024
24 de maio de 2024
Errata
Nunca dominaste minimamente a linguagem do amor, davas tantos pontapés na gramática, quanto as coças que sofreste da vida, por isso, das raras vezes que tentavas expressar afecto ou estima para com os teus, cada vez em menor número, entes queridos, como uma canção mal sintonizada no autorrádio, de quasi inaudível instrumental e mastigado refrão, cedia ao vício da virtude e corrigia-te. No lugar de um 'gosto de ti', querias dizer 'amo-te', porém as razões do teu coração resistiam às regras da língua. Hoje vejo nisso uma certa poesia. Não devemos impor ao outro a forma como exerce o seu fracasso de ser livre. Há quem prefira ser quase um livro em branco. Porém, nada disso importa. Descansa agora, adormece no repouso do calor da luz do que recordo de ti.
23 de maio de 2024
Despolariza
Há cinco guerras activas no mundo, que não vou enumerar, porque não me apetece esclarecer o coração das trevas, que é o coração comum de todos nós. Quando expresso a minha opinião, simpática ou não, por uma determinada fação, serei inimigo da outra? Eliminou-se de vez o nevoeiro da nuance, para se imporem no peito nu da dúvida, os pioneses condecorativos da eterna noite escura de uma verdade una e inconsútil? Dividir-me não será a traição da visão holística da humanidade? Quer dizer que certos órgãos, certos membros do corpo da consciência colectiva estão podres, não prestam e devem ser amputados ou deitados fora? Se preferir o azul estarei contra o amarelo? Entre duas coisas, haverá sempre uma oposição? A actualidade encontra-se agora capturada e manietada pelo punho de ferro do regime despótico da dicotomia? Tornámo-nos mesmo seres duais? O virtuoso e, do outro lado, o inimigo da virtude? E a poesia, sairá afectada com isso? E os deuses, renovarão gargalhadas diante de mais um triste episódio de la comédie humaine?
4 de maio de 2024
Guarda-Chuva
Tinha-me esquecido do guarda-chuva no nosso bengaleiro, pelo que, quando senti o súbito e subtil enunciado dos primeiros pingos, protegi a cabeça deste conto de intempérie, com o vistoso e perfumado bouquet de flores desconhecidas que estavam a umas horas de diluviano percurso do destino do teu sorriso de porto tranquilo. Devo ter calcorreado o que me pareceram séculos e séculos de passeios (foram), que, ao ignorar o arco íris desmaiado no azul sem vontade do alto, fez-me sentir falta da voz dos trovões como se essa cadência narrativa me guiasse e musicasse os passos, mas agora estava só, com um ramo de flores em fanicos, em silêncio, no interior do restaurante de sempre, olhando duas cadeiras vazias e um par de velas tremeluzindo na sua verdade que fazia questão de não me esquecer de celebrar cada aniversário sobre a tua partida.